terça-feira, 30 de março de 2010

A pane nossa de cada dia

Falar das panes que já ocorreram comigo nestes 25 anos de aviação comercial é muito fácil, e até sem graça, pois quase não as tive. Os sistemas dos aviões possuem muitas redundâncias, e frequentemente há dois, três ou mais componentes trabalhando para a mesma finalidade, então dificilmente uma pane isolada vai afetar a operação de um trem de pouso ou flape, por exemplo.

Panes de motor são cada vez mais raras. Quando eu voava o Electra na Ponte Aérea, houve uma ou duas ocasiões em que um dos motores foi desligado em voo, mas isso não era tão incomum, já que em aeronaves quadrimotoras o voo com um motor cortado não se configura uma emergência. Além do mais, nos Electras este procedimento era efetuado mais por precaução no sentido de poupar o motor, do que por real necessidade. O voo seguia tranquilamente para o destino, os passageiros mais assíduos já nem se espantavam ao ver uma das quatro hélices parada. Depois de deixei o Electra em 1987, nunca mais passei por situações em que tive que voar com um motor desligado.

As panes hidraulicas, que podem ser causadas por uma falha em uma das bombas ou um vazamento do fluído, são também muito raras. Este tipo de pane pode levar a uma alteração na configuração de flape de pouso, e consequentemente no aumento da velocidade de aproximação e distância de pouso. Falhas hidráulicas também podem afetar os freios e assim requerer pistas maiores para frenagem do avião. Esta é uma das panes que mais treinamos em simulador de voo, e as vezes é bem trabalhosa já que também pode afetar os controles de voo, tornando a pilotagem mais difícil. Felizmente em voo real os sistemas hidraulicos nunca me deixaram na mão.

Os instrumentos de voo podem ocasionalmente apresentar uma falha, mas são tantas as possibilidades de transferências e "informações cruzadas" nestes equipamentos, que raramente leva o piloto a uma situação difícil. No 737-200 tive algumas panes de piloto automático, quando nenhum dos 2 funcionaram à contento. Sem problemas, já que a pilotogem manual no "Breguinha" era muito tranquila e o voo mais longo na época era Cuiabá-Rio Branco com cerca de 2 horas. Nos demais aviões que eu voei, nunca tive problemas com o piloto automático. Ainda bem, pois no MD-11, a pilotagem manual em grandes altitudes pode se tornar uma tarefa difícil se em condições meteorológicas desfavoráveis. Sendo o MD-11 um avião grande, sem a atuação do piloto automático, o aviador vai permitir pequenas oscilações no eixo longitudial, e o voo vai ficar desconfortável aos passageiros especialmente em etapas de longa duração. Ainda quando eu voava o Breguinha, teve uma vez em que depois de decolar de Guarulhos, percebemos que os dois sistemas do radar meteorológico estavam inoperantes. Após analisar a situação por alguns minutos decidi retornar, afinal o voo era noturno, havia previsão de nuvens pesadas e o voo seguiria até Manaus. Em menos de 20 minutos o radar foi substituido pela equipe de manutenção e o voo seguiu normalmente.

Algumas panes são muito sérias e difíceis de serem simuladas nos treinamentos. São as situações de fogo ou fumaça a bordo. O fogo pode ser na cabine de passageiros, no "cockpit", em áreas inacessíveis tais como o interior do compartimento de carga ou no porão de equipamentos eletrônicos, que fica situado justamente abaixo da cabine de comando. A ação de combate ao incêndio deve ser imediata, usando todos os recursos possíveis. Para o porão de carga, há agentes extintores que são acionados. No porão eletrônico, o combate será através da eliminação do oxigênio neste compartimento, e na cabine de passageiros e dos pilotos, com o auxílio de extintores manuais. Neste momento a participação dos comissários de bordo é fundamental pois os pilotos estarão planejando um possível pouso de emergência no caso do fogo não ser controlado. Fumaça a bordo também pode ser um problemão, especialmente se não for possível identificar a origem. Na cabine de comando, as máscaras de oxigênio são do tipo "full face" que protegem os olhos da fumaça. Mais uma vez, enquanto efetuamos os procedimentos de eliminação da fumaça, já estaremos planejando um pouso de emergência. Onde há fumaça, há fogo, e espero nunca ter qualquer problema desses!

As panes de pressurização são mais comuns de ocorrer, mas mesmo assim, como este sistema possui o modo automático, o modo auxiliar (que também trabalha automaticamente) e ainda o modo manual, dificilmente uma pane dessas acarreta na não continuação do voo para o destino programado. Antigamente as falhas de pressurização eram mais comuns, pois na época em que era permitido fumar a bordo, as válvulas que controlam a saida de ar para o exterior (outflow valve) ficavam impregnadas de nicotina, causando seu travamento, e assim afetando o controle de pressurização dos aviões. Quem já viu uma válvula dessas impregnada de nicotina, diz que é impressionante! Certa vez, voando o MD-11 de São Paulo para Santiago do Chile a pressurização apresentou uma falha. Lentamente o avião foi despressurizando até que em um determinado momento o alarme de falha na pressurização tocou. Isto indica que o nível de oxigênio está diminuindo e a cabine está perdendo a pressurização. Neste estágio, ninguém vai apresentar dificuldades para respirar, mas por precaução os pilotos já devem colocar as máscaras de oxigênio. Ao mesmo tempo em que passamos o sistema de pressurização para o modo auxiliar, já iniciamos uma descida para uma altitude onde a pressurização se estabilizou e a situação foi aparentemente controlada. Acontece que na rota para Santiago do Chile há o cruzamento dos Andes, quando voamos próximos ao Aconcágua, o ponto mais alto das Américas. Nossa altitude naquele momento era o mais baixo nível de voo permitido para a rota. Considerando a região em que estávamos voando, que a pressurização ainda não estava 100% em ordem e que havia de fato uma fuga de ar que levava o sistema a trabalhar sobrecarregado, optamos por não prosseguir para Santiago e seguir para a alternativa, que no caso era Porto Alegre. Claro que os passageiros não ficaram felizes, mas fazer o quê? Depois que pousamos a equipe de manutenção constatou que um acabamento de borracha junto à porta do compartimento de bagagens havia ficado parcialmente para fora, e isso impedia a correta pressurização do avião. A borracha estava bastante danificada e seria necessário substituí-la. O voo acabou ali e o avião só pode voar novamente horas depois, após a manutenção efetuar os reparos necessários.

Finalmente, uma outra situação que pode ser tensa é a interrupção de uma decolagem quando em alta velocidade, ou ainda a falha de um motor quando não há mais distãncia para uma parada segura sobre a pista, tendo que a decolagem ser continuada com apenas um motor funcionado. A manobra de interrupção deve ser bem executada, pois, especialmente se o avião estiver proximo ao peso máximo de decolagem, provavelmente não restará muita pista à frente para a desaceleração. Interromper uma decolagem estando em alta velocidade só deve ser executada em casos extremos tais como falha de motor (perda de potência), fogo ou alarme de fogo nos motores, ou uma condição que torne o voo inseguro e perigoso. Nos demais casos, é melhor prosseguir a decolagem, combater a pane e gerenciar a situação para então solicitar o regresso ou mesmo o prosseguimento para um aeroporto que ofereça melhores condições ao pouso. São situações que já treinei exaustivamente em simulador, e que na vida real, nunca experimentei.

No dia a dia o que acontece são pequenos problemas fáceis de serem gerenciados e que fazem parte do trabalho. Ao me dirigir para a cabeceira da pista, penso que estou preparado para o que der e vier, mas sinceramente, espero nunca ter as panes que tanto treino no simulador, e poder voar mais 15 ou 20 anos sem ter grandes aventuras deste tipo para contar.

quinta-feira, 25 de março de 2010

A família e o trabalho

Uma pergunta frequente que é feita aos pilotos, é como eles conseguem conciliar profissão com vida familiar. As pessoas me perguntam se eu paro em casa, quantas folgas eu tenho por mês, e ao saberem que sou casado com uma comissária de bordo, aí então que que me olham como se eu fosse um ET, e meus filhos criados por terceiros! Se eu sou piloto e minha mulher comissária, com faço com as crianças? Eu vejo minha mulher de vez em quando?

Para falar a verdade, eu fico em casa muito mais do que as pessoas pensam, aliás, talvez eu consiga ter uma presença junto à minha família bem maior que muitos dos meus amigos que possuem outras profissões. O número mínimo de folgas por mês é de 8 dias, mas normalmente há 9 ou até 10 dias de folga dependendo da malha aérea prevista para o mês. Além disso, há aqueles dias em que o trabalho só começa à noite, ou então encerramos uma programação bem cedo pela manhã, então embora estes dias não sejam de folga, passo o dia em casa. Há também programações de ensino, e nestes dias o expediente é das 8:30 às 17:00 hs.

Quando minha filha nasceu em 95, eu viajava muito, mas quando meu segundo filho nasceu em 98, consegui ficar fixo no quadro da Ponte Aérea. Foram quatro anos e meio praticamente sem uma noite sequer fora de casa. Depois da Ponte fui para a aviação internacional, vivendo mais 3 anos e meio de escala mansa, com muitas folgas agrupadas. É bem verdade que em muitos fins de semana, quando normalmente os filhos tem mais tempo para passar com o pai, eu estive voando, mas em compensação, quando estou em casa nos dias de semana, consigo fazer as três refeições com a minha família. Levo filhos para escola, busco na saída, levo ao dentista, ao esporte e às aulas de música!

Minha mulher tem uma escala de voos bem tranquila, são poucas as ocasiões em que o casal está fora, mas as vezes acontece. Em 95, minha sogra nos deu uma grande ajuda quando veio do Rio de Janeiro para morar por 2 anos em São Paulo. Em 98 conhecemos a Fátima, que veio trabalhar conosco como babá do nosso caçula, e até hoje nos ajuda, sendo que quando precisamos ela dorme em casa com as crianças. Minha irmã dá uma força quando necessário e posso contar com o insuperável apoio da minha mãe, que nunca nega um pedido para pegar os netos e levá-los às atividades, festas e outros compromisssos. Assim trabalhamos tranquilos e os filhos ficam em boas mãos.

Minha filha mais velha está prestes a completar 15 anos e está cada vez mais independente, já volta sozinha de ônibus do colégio. O mais novo ainda não tem esta independência, mas não vai demorar muito para que ambos possam passar mais de um dia sem que algum adulto esteja vigiando-os. Aliás, esta é uma característica de filhos cujos pais são tripulantes: cedo aprendem a se virar e se organizar nas atividades diárias.

Outro aspecto favorável da aviação comercial para a minha vida familiar, é o fato de podermos programar as folgas, portanto sempre peço folga para o dia do aniversário dos meus filhos, minha esposa e de minha mãe. Não consigo me lembrar quando foi a última vez que trabalhei no dia do meu aniversário! Dia das mães, dia dos pais, apresentação de fim de ano no colégio das crianças...Pedindo com antecedência, costuma dar certo. A única restrição é no final do ano, quando folgamos ou no Natal, ou no Ano Novo, o que é muito justo.

Quando estou de folga, não há tarefas relacionadas ao trabalho para se fazer em casa. Não há relatórios, telefonemas nem nada a ser preparado para o próximo dia de trabalho. Em algumas ocasiões no ano, quando tenho treinamento em simulador, tenho que estudar em casa, mas de um modo geral, consigo deixar as leituras de manuais e atualizações para serem feitas durante as viagens. Quando chego em casa, guardo a mala no armário e me dedico ao meu papel de pai e marido, para só pensar em trabalho algumas horas antes de uma nova viagem.

Sendo assim, contra a crença popular, consigo ter uma vida familiar absolutamente normal e tenho certeza que no futuro meus filhos vão poder dizer que embora tenham sido filhos de pais tripulantes, tiveram a mim e minha mulher muito presentes no dia-a-dia.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Os bons tempos

O tempo em que voei o MD-11 foi sem dúvida um dos melhores períodos da minha vida profissional. Os voos para a Europa e EUA eram, na maioria das vezes, jornadas de apenas uma etapa, onde trabalhávamos em conjunto (pois eramos em 3 ou 4 pilotos na cabine), dividindo tarefas, conversando e fazendo planos para o pernoite. Já que havia tempo e um bom local para descanso durante o voo, eu quase sempre chegava fisicamente disposto e animado no destino, pronto para as coisas boas da aviação internacional: boas compras, passeios incríveis e bons restaurantes.

Nos pernoites em Nova Iorque, Miami e Los Angeles, havia os passeios junto com os colegas, mas é inegável que o grande barato destas cidades era ir às compras.

Na Europa, as compras eram uma atividade secundária, pois o bom mesmo era passear e explorar as cidades. Certa vez em Madri, ao voltar para o hotel após muito caminhar pela cidade, me dei conta que passaria perto do estádio de futebol Santiago Bernabéu, inaugurado em 1947 e hoje sede do Real Madri. Naquela noite estava tendo o clássico Real Madri X Atlético de Bilbao, então desci algumas estações antes do meu destino e dei uma volta ao redor do estádio. Estava no intervalo do jogo, e lá em Madri, os torcedores podem sair do estádio para um lanche e voltar em seguida. Observei um senhor que se afastava do estádio acompanhado de duas moças, e como parecia que eles não iam voltar para o segundo tempo, abordei-os em um espanhol sofrível, dizendo que era brasileiro e gostaria de ver o jogo. Ele simplesmente me entregou o seu bilhete! Será que aquele bilhete era válido? Seria eu barrado na catraca? Entrei e me sentei na primeira fileira junto ao corner do Bilbao. O segundo tempo estava começando e o placar era desfavorável aos Galácticos por 3 x 0. Lá estavam Robinho, Roberto Carlos e David Beckham entre outros. Virada no segundo tempo, e o time da casa venceu por 3 x 1. Foi muito legal!

De Milão, Paris e Londres, nem há o que dizer, ou melhor há tanto a dizer, que o melhor é imaginar. Em Amsterdam, saíamos de bicicleta indo de uma cidade a outra, pois as distancias entre elas são muito pequenas. Em Lisboa só peguei tempo bom, com passeios pela cidade velha e um bom bacalhau à noite. Em Roma, além de vasculhar a cidade, ainda tive a chance de ir de trem à Florenca. No méxico, fiz um passeio incrível para conhecer Teotihuacan, que é um sítio arqueológico daquela que foi a maior cidade da era Pré-Colombiana. Um lugar mágico, voltei para casa encantado e prometendo levar minha família para conhecer.

De todos os destinos que o MD-11 me levou, o melhor deles foi Frankfurt. Na verdade, o pernoite não era exatamente em Frankfurt, mas sim em Mainz, que é uma cidade de 200 mil habitantes situada no paralelo 50º N, à margem do Rio Reno e junto a desembocadura do Rio Meno. Mainz foi ocupada pelos Romanos no século I, e ainda hoje é possível ver na cidade, sítios arqueológicos com vestígios daquele período. Possui uma linda catedral do século X e foi a cidade onde viveu Johannes Gutemberg, que no século XV inventou a imprensa. Lá em Mainz, nós, tripulantes da Varig, (e também de várias outras empresas de aviação) ficávamos no Hotel Hilton, bem em frente ao Reno, junto ao centro da cidade que era um charme com seus calçadões, tudo limpo e organizado, uma beleza! Havia um Pub neste hotel em que no final da tarde havia uma promoção nos drinks em que pagávamos por um e recebíamos 2. Assim, lá era ponto de encontro dos tripulantes, que ficavam batendo papo e saboreando uma Weissbier até que o período da promoção se encerrasse para então seguirem em grupos para as várias opções de restaurantes. Por 3 décadas o pessoal frequentou o restaurante das Irmãs Sisters (este é o apelido do restaurante, onde as proprietárias atendiam os fregueses,e o nome verdadeiro é algo impronunciável para quem não é letrado na língua de Goethe). Lá era servido um joelho de porco maravilhoso, além de um Chicken Schnitzel com champingnon que era dos Deuses. Tinha o Big Ed, que era um restaurante pequeno de comida típica em que o próprio Ed e sua esposa recebiam, atendiam, cozinhavam, serviam e conversavam com os clientes. Depois do jantar, um sorvete e se houvesse disposição podíamos ir ao Irish Pub, que estava aberto 7 dia por semana com rock`n roll ao vivo. Outra atração imperdível eram as barracas de comida, artesanatos, lembrancinhas e presentes que ficavam montadas durante todo o mês de dezembro junto à Catedral de Mainz. E 365 dias ao ano havia sempre uma barraquinha para comer um delicioso Bratwurst com mostarda. Dá água na boca! E havia as boas compras nas diversas lojas da cidade. Mainz é demais! E Frankfurt? É uma cidade bacana próxima a Mainz, a apenas 30 minutos de trem.

No voo de volta ao Brasil os tripulantes estavam sempre animados e felizes pelos passeios e compras que fizeram. No longo voo de volta, durante o voo de cruzeiro, líamos os jornais em busca de notícias, conversávamos e descansávamos enquanto o avião avançava em direção ao hemisfério Sul. Mesmo voando a noite toda (por algumas horas eu estava no "sarcófago", dormindo na horizontal) chegava em casa pela manhã animadíssimo, pronto para ir ao clube e jogar tênis.

A aviação internacional ainda trazia a vantagem de proporcionar uma escala de voos mais tranquila por ter mais folgas entre as programações, além de mais horas de voos noturnas, que no final do mês se traduziam em um adicional na remuneração. Recebíamos um valor de diária em moeda estrangeira para alimentação quando fora do Brasil, e deste valor, o que não gastávamos nos pernoites, economizávamos. Outra coisa legal eram as oportunidades de levar a família para nos acompanhar nestas viagens. E finalmente, a sensação de orgulho ao concluir cada etapa de voo.
Paradoxalmente, foi neste mesmo período feliz da minha carreira que eu e todos os demais fiuncionários da Varig tivemos que trabalhar em condições muito difícieis devido à crise que aumentava a cada dia. Esta crise será assunto para um próximo capítulo.



  • As duas primeiras fotos são da clássica Weissbier e do Bratwurst
  • Em Los Angeles em um parque de montanhas-russas, junto com os colegas
  • Em Teotihuacan, no México
  • O estádio Santiago Bernabéu
  • Em Mainz, junto ao Rio Reno no inverno
  • No Tãmisa em Londres
  • Com os colegas em Paris

terça-feira, 16 de março de 2010

Bomba a bordo!

Aconteceu em Buenos Aires, numa noite de sábado. Havia apenas 120 passageiros e o embarque estava quase no fim quando observei várias viaturas da Polícia se aproximando do avião. Um dos policiais entrou na cabine de comando e com certa urgência disse que todos a bordo, passageiros e tripulantes, deveriam desembarcar imediatamente com seus pertences de mão. Manda quem pode, obedece quem tem juízo, diz o ditado! Alegando razões de segurança, rapidamente dei instrução aos passageiros e tripulantes para abandonar o avião.

Os policiais me informaram que através do serviço telefônico 911, haviam recebido uma denúncia de bomba a bordo. Denúncias anônimas deste tipo não são incomuns, e para cada ocorrência, um nível de alerta é gerado pelas empresas aéreas e principalmente pelas autoridades. Se a denúncia, ou a ameaça, não vier acompanhada de qualquer detalhe ou informação adicional, o nível de alerta será baixo, porém naquele dia havia algo a mais. Segundo a informação que nos foi dada, o telefonema que gerou e elevou o nível de alerta dizia que a bomba estaria em um voo para o Brasil que partiria às 20:30 hs. Era justamente o nosso destino e horário!

Ao desembarcar, passageiros e tripulantes foram submetidos novamente à uma inspeção de segurança, desta vez mais minuciosa e efetuada por policiais especializados. Passamos pelo detector de metais, por revista pessoal, e nossas bagagens de mão mais uma vez pelo Raio X. Além disso, os passageiros foram chamados individualmente para verificação de cartão de embarque e documentação. Àquela altura dos acontecimentos, a maioria dos passageiros já tinha entendido o que estava acontecendo, porém outros buscavam esclarecimentos junto ao pessoal de terra da empresa.

À polícia cabia efetuar uma varredura completa na aeronave, não só na cabine de passageiros, mas também em todo e qualquer lugar onde fosse possível esconder um artefato explosivo. Para isso, nosso avião foi rebocado para uma posição afastada do terminal e de outras aeronaves com a finalidade de reduzir os danos no caso de realmente ser encontrada a bomba. Com a ajuda de um técnico da manutenção e de cães farejadores, o avião foi minuciosamente revistado. Porão eletrônico e de carga, compartimento do ar condicionado e do trem de pouso, atrás de certas divisórias e acabamentos ao longo do avião, lixeiras, material de comissaria, cabine de comando e até a área dentro do motor foi inspecionada. Por fim, todas as bagagens e cargas que estavam no porão tiveram que passar pelo Raio X.

Enquanto isso, no saguão de embarque, os passageiros pareciam aflitos com a situação. Nestas situações de atrasos, os tripulantes não gostam de ficar por perto dos passageiros, pois sabem que muitas perguntas surgirão, assim a maioria se esconde. Eu penso diferente e sempre que posso, nestas ocasiões, fico por perto, presente, junto aos passageiros. Procuro passar tranquilidade e segurança, informando àqueles que me abordam sobre os acontecimentos, dizendo a verdade sempre que possível. Assim, enquanto os demais tripulantes do voo foram fazer um lanche, pois a demora seria grande, eu passei um bom tempo no saguão de embarque, junto ao pessoal de terra da companhia, informando e esclarecendo aos passageiros quanto aos acontecimentos. Alguns queriam saber se poderiam embarcar no dia seguinte, em um outro voo. Acontece que enquanto a polícia não terminasse a varredura e liberasse a aeronave, nenhum passageiro estava autorizado a deixar o aeroporto, pois até então, éramos todos suspeitos!

Passada uma hora e meia desde que tivemos que desembarcar, finalmente o avião foi trazido de volta à posição original. O embarque foi realizado, ninguém desistiu da viagem. Conversei com um dos policiais e com o técnico da manutenção que acompanhou a inspeção da aeronave, e ambos me asseguraram que a procura havia sido rigorosa, nada fora encontrado e que estava tudo em ordem, poderíamos voar com segurança. Antes de iniciarmos a nossa viagem, me dirigi aos passageiros pelo sistema de som, procurando tranquilizar a todos quanto aos procedimentos adotados e a segurança do voo.

Sei que havia uma certa tensão a bordo, e confesso que enquanto a polícia fazia a varredura na aeronave, pensamentos catastróficos passaram pela minha cabeça por um ou dos minutos. Procurei confiar no trabalho da polícia, já que este tipo de situação, apesar de incomum, não é novidade na aviação.

O voo foi tranquilo e com o atraso acabei chegando em casa às três da manhã, com mais uma estória para contar.

terça-feira, 9 de março de 2010

Reservas e sobreavisos

Na escala de trabalho de um tripulante há sempre os plantões, afinal, um voo não pode deixar de sair devido a falta de pilotos ou comissários. Na aviação comercial os plantões podem ser no aeroporto ou em casa.

RESERVA: É o período de tempo em que o aeronauta permanece, por determinação do empregador, em local de trabalho à sua disposição, sendo que o período de reserva não excederá de 6 horas.

O local determinado pelo empregador, neste caso, é o aeroporto, mais especificamente no Despacho Operacional, que é um grande espaço onde os tripulantes se reunem antes de seguir para os aviões, o chamado D.O. Ficamos por lá, alguns já uniformizados, outros à paisana tendo o uniforme pronto para vestir. Neste período, aproveitamos para bater papo, saber das novidades e fofocas da empresa e encontrar colegas que não víamos há tempos. Há no D.O. uma sala de repouso, dotada de poltronas onde é possível dar uma cochilada, o problema é que constantemente um auto-falante anuncia a chamada de voos, chamada a tripulantes e outras informações que podem inclusive ser para você se apresentar imediatamente e efetuar um voo. Podemos nos ausentar por breves períodos (viva o celular que nos deixa comunicáveis a todo instante!) para tomar um cafézinho, passear pelo sagão do aerporto e observar o movimento e também dar um pulo na livraria. Sempre que cumpro uma reserva e não sou acionado, volto para casa cheio de novidades, fofocas e notícias dos amigos para contar.

Quando em reserva, podemos ser acionados para ir para qualquer lugar, então o desafio e fazer uma mala que contemple todas as possibilidades. Roupa de frio e de calor, roupa mais arrumada e também roupas mais descontraida. Assim já aconteceu de eu levar casaco de lã e cachecol para Manaus, e também ir para Londres munido de sunga e sandálias Havainas!

SOBREAVISO: Sobreaviso é o período de tempo não excedente a 12 horas, em que o aeronauta permanece em local de sua escolha, à disposição do empregador, devendo apresentar-se no aeroporto ou outro local determinado, em até 90 minutos após receber comunicação para o início de nova tarefa. O número de sobreavisos que o aeronauta poderá concorrer não deverá exceder a 2 semanais ou 8 mensais.

No sobreaviso ficamos em casa aguardando uma eventual convocação. No passado, antes da popularização dos telefones celulares, a logística do sobreaviso era um pouco mais complicada pois ficando em casa, tínhamos a preocupação de não usar muito o telefone, mantendo a linha livre para uma possível chamada da empresa. Havia os tripulantes que usavam da prerrogativa de não fornecer à Escala de Voos (setor responsável pela movimentação e acionamento dos tripulantes) o número de telefone de suas residências, e neste caso, a empresa enviava um emissário que ia na residência do tripulante tocar a campainha ou interfone com o comunicado de acionamento. Muitas vezes, este emissário acabava chegando após o horário de término do sobreaviso, então corria-se o risco do tripulante, ao não desejar ser acionado, sequer atender a campainha ou interfone, afinal, o período de disponibilidade legal já havia encerrado!

Hoje em dia com a telefonia móvel, ficou bem mais fácil para o tripulante e para a empresa. Já cumpri sobreaviso no clube, jogando tênis com o celular no bolso, já cumpri almoçando fora com a família, no shopping e até dentro de uma sessão de cinema. Para isso, basta estar de barba feita e com a mala no carro, pronto para seguir direto para o aeroporto.

Há uns anos atrás, quando voava o MD-11, estava em casa de plantão até as 23 hs. Havia voltado de um restaurante japonês em que heroicamente me abstive de tomar uma cerveja ou um saquê, pois nunca se sabe quando vamos ser acionados. Faltavam 5 minutos para o encerramento do meu sobreaviso, estava de pijama, quase apagando o abajour para dormir, quando o telefone tocou. Estava sendo acionado para ir o mais rápido possível para o aeroporto, pois um dos comandantes do voo para Paris não havia se apresentado, e sequer dado notícias! Os passageiros estavam aglomerados no saguão de embarque e faltavam apenas 45 minutos para o horário de saída do voo. Procurei ser o mais rápido possível e enquanto eu tomava uma ducha rápida, minha mulher já ajeitava umas roupas na minha mala. Dei um beijo nela e nas crianças, e segui para Guarulhos. Ao passar pelos passageiros que aguardavam impacientes pelo momento do embarque, pensei que ou seria vaiado ou aplaudido. Fui aplaudido!

Há os tripulantes que se mostram disponíveis para ser acionados, ainda que fora do horário previsto, e aqueles que não aceitam serem contatados fora do periodo de sobreaviso. Quando a aviação está "enrolada", a Escala de Voo sai procurando os tripulantes para serem acionados, e a necessidade pode ser tão grande, que mesmo quem está de folga corre o risco de ser contatado. Certa vez, no aeroporto do Galeão-RJ, havia um voo de Jumbo 747, que por algum motivo necessitava de um comandante. Depois de procurar alguém disponível para assumir aquele voo, a Escala encontrou um comandante que inclusive morava na Ilha do Governador, que sendo bem próximo ao aeroporto, talvez nem atraso acarretaria no voo. Ligaram para ele, pedindo então que ele viesse o mais rápido possível. Acontece que este comandante já estava aposentado a quase um ano, o nome dele nem deveria constar da relação de pilotos da empresa! Pensando que se tratava de uma brincadeira, o comandante se prontificou a realizar o voo, dizendo inclusive, que o embarque poderia ser iniciado pois em menos de 30 minutos ele já estaria chegando. Passado mais de uma hora um novo contato foi feito, e a confusão esclarecida, tendo a Escala que reiniciar a procura por um comandante disponível. O resultado foi que além do voo sair com mais de duas horas de atraso, o comandante que já estava aposentado, ainda recebeu uma punição! Ele teve o direito de comprar passagens aéreas com desconto revogado! Mas foi por poucos dias pois ele se dirigiu à Diretoria de Operações, que ao perceber o absurdo cometido, devolveu a ele os direitos.

Outra estória engraçada, foi de um colega que estava em casa à noite com sua mulher, quando o telefone tocou. Ele mesmo atendeu, e o funcionário da Escala, se identificando como tal já foi perguntando se quem estava falando era o comandante "Fulano". Não desejando, e estando desobrigado a aceitar progamações naquele momento, ao mesmo tempo que não queria se negar a atender uma solicitação, ele teve uma grande inspiração e pediu um momento à quem estava do outro lado da linha. Então, como que se dirigindo a sua esposa que estaria ao seu lado, disse, de forma que o funcionário da escala de voos pudesse ouvir: - Amor, deve ser telefone para o seu marido, pois se identificaram dizendo ser de uma tal "escala de voos"! Nisso o cara da escala achou que estava dando o mair fora, e imediatamente desligou o telefone! Que blefe!
  • As fotos são de Salvador, Santos e Fortaleza.

quarta-feira, 3 de março de 2010

A paisagem mais linda de todas


De todas as aproximações que já fiz, as chegadas para pouso no aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro foram as que mais me entusiasmaram. Foram quatro anos e meio de voos na Ponte Aérea, em que não me cansava de ver a beleza daquela cidade.

Quando o tempo estava bom, tanto de dia quanto à noite, tínhamos a opção de cancelar o voo por instrumento e seguir de acordo com as regras para voo visual. Desta maneira gozávamos de uma certa liberdade para escolher nossa trajetória de chegada, e assim aproveitar o voo panorâmico. As opções eram muitas, podíamos sobrevoar a Lagôa Rodrigo de Freitas, seguir paralelo à linha do litoral com o visual das praias e sobrevoar Niterói. Havia uma aproximação que informalmente chamávamos de ¨sovaco do Cristo¨: passávamos próximo ao Cristo Redentor já iniciando uma curva à esquerda sobre Botafogo e Flamengo para então, com o Pão de Açucar e o Morro da Urca à direita, completar a aproximação e pousar, tendo à frente a Ponte Rio-Niterói. Depois de uma aproximação destas, sair da cabine de comando e sentir a maresia que vinha com a brisa do mar, trazia um bem estar enorme! A cidade do Rio de Janeiro oferece uma série de ingredientes que nunca vi reunidos em outro lugar. Principalmente no verão, há sempre grandes navios de cruzeiro enfeitando a Baia de Guanabara. Há também montanhas e florestas, as praias, veleiros em regatas nos fins de semana, plataformas marítimas estacionadas próximas à Ponte Rio-Niterói, submarinos na superfície, navios mercantes e da Marinha que fazem nossos olhos se alternarem entre o painel do avião e a paisagem. No céu, há mais a ser observado: asas delta próximo à Pedra da Gávea, pequenos aviões puxando faixas publicitárias sobre as praias, e pela manhã, balões subindo em rumos errantes.

Era bacana observar as diversas construções sobre a cidade, sendo que algumas delas servem para nos orientar em relação a determinadas trajetórias de aproximação. O Maracanã, a estação da Central do Brasil e o Hospital 4º Centenário próximo ao Morro Dona Marta, são edificações importantes na nossa orientação de chegada. Na semana de carnaval, pode-se avistar a Marquês de Sapucaí de bem longe. Já na chegada, ao passar sobre a Ponte próximo ao pouso, observamos os porta aviões da Marinha do Brasil e a Ilha Fiscal, que com seu castelinho verde pistache, nos remete à sua inauguração em 1889. Faltando pouco para tocarmos a pista, com o Pão de Açucar lá na frente, inúmeras vezes observamos as barcas que saem do atracadouro da Praça XV em direção a Niterói. Eu não sei exatamente qual é a sensação do ponto de vista de quem está dentro da barca, mas do meu ponto de vista sentado na cabine, embora a distância entre barca e avião seja considerada segura, passa perto, muito perto!