quarta-feira, 30 de maio de 2012

Observação e improvisação

Neste último sábado tive o prazer de participar de um encontro na Universidade Anhembi Morumbi, onde tive uma experiência como palestrante. Foi muito bacana poder conversar e contar algumas estórias para um grupo de cerca de 50 estudantes do curso de aviação civil. Fiquei muito contente em conhecer pessoalmente alguns dos leitores do Blog e também curti passear pelo Campus Centro da faculdade. A unidade fica no Brás, onde antigamente era a fábrica da Alpargatas, que evidentemente foi reformada e adaptada para ser uma faculdade. Sendo uma manhã de sábado o campus estava bem vazio, mas deu para sentir o clima universitário, conheci parte das instalações e gostei especialmente da biblioteca. Até dá vontade de voltar a ser um estudante!


Quanto à palestra deste sábado, confesso que no inicio eu estava um pouco nervoso, mas fui me soltando e consegui passar o meu recado. Acho que o pessoal gostou, até porque, creio que uma palestra repleta de informações técnicas, em plena manhã de sábado, não iria cair muito bem. Nosso encontro durou duas horas e no final tiramos fotos, respondi a mais umas perguntas e bati um papo com alguns estudantes e com o Professor Edson Cabral que estava coordenando o encontro. 

Por falar em palestra, me lembrei de uma estória que li no livro “Mais vale o que se aprende que o que te ensinam”- Editora Best Seller, do publicitário Alex Periscinoto. Ele fala da capacidade de observação que todos nós temos, mas que alguns possuem em um grau bastante elevado. Ele conta a estória de um grande palestrante, daqueles que vivem dando palestras motivacionais para grandes empresas. Essa era a vida dele e para ir de um lugar para outro estava sempre com seu fiel motorista que durante as palestras assistia a tudo de um canto do auditório. Em um determinado dia, dirigindo para mais um dia de trabalho, o grande palestrante disse que não se sentia bem, estava com uma tremenda dor de cabeça e inseguro quanto a ter um desempenho adequado. O que fazer?

O motorista, que o acompanhava há anos nas palestras e que era um grande observador, propôs uma solução. Ele se ofereceu para fazer a palestra, afinal, além de uma semelhança física com o patrão, ele sabia exatamente como a palestra vinha sendo conduzida. Para provar que seria capaz, ele praticamente recitou todo o roteiro da palestra, além de dizer como se movimentaria e outros detalhes do comportamento do patrão durante as mais de duas horas de palestra. O patrão ficou bastante impressionado, seu motorista era um grande observador! Não havia outra opção, eles iriam trocar de lugar, o motorista seria o palestrante naquele dia.

O motorista foi perfeito! Abriu a palestra tal qual seu patrão, contando os casos de sucesso, as experiências no exterior e manejou com desenvoltura o “power point”. Estava à vontade com o microfone na mão, olhando sempre de frente para a plateia. Ao terminar sua exposição, abriu para perguntas e respondeu com segurança cada uma delas, afinal, as perguntas eram sempre as mesmas.

Mas então alguém da plateia fez uma pergunta que nunca havia sido feita antes. Ele não tinha a menor ideia da resposta, tão pouco poderia deixar de responder. Ele se lembrou de seu patrão, que sempre dizia que não basta ser um grande observador, tem que saber improvisar. Pois ele improvisou e com a maior segurança disse: - Ora, a resposta é tão simples que eu vou deixar que meu motorista, que está sentado no fundo do auditório, responda por mim!  

Foi um sucesso!





segunda-feira, 14 de maio de 2012

Confiança

A confiança cumpre um papel primordial na aviação. Para efetuar um voo de “A” para “B” temos que confiar em pessoas e equipamentos e para isso é preciso que a empresa possua bons funcionários, bom treinamento e bons recursos materiais. Quando, por exemplo, o funcionário responsável pelo carregamento de uma carga perigosa nos informa que está tudo devidamente acomodado no porão de cargas, conforme os regulamentos e procedimentos vigentes, e nos pede para assinar o formulário de aceitação, temos que acreditar que de fato está tudo nos conformes. Um aspecto de extrema importância na preparação de um voo, e que nós pilotos temos que confiar na equipe que executa, é a correta distribuição da carga e bagagens. Uma carga mal distribuída ou mesmo mal fixada, muito para trás ou para frente do avião, pode ter consequências desastrosas, principalmente nas operações de decolagens e pousos. Tudo deve ser pesado e distribuído de acordo com as planilhas de peso e balanceamento para gerar um documento que o comandante deve assinar. Mais uma vez temos que confiar, não dá para verificar pessoalmente a carga no porão!


E o que dizer da confiança que depositamos nas instruções do órgão de controle de tráfego aéreo? Ao lidar com os funcionários do carregamento, balanceamento, mecânicos, despachantes e tripulantes, há como olhar nos olhos e perguntar: - Tem certeza que está tudo OK?  Já o controlador de tráfego aéreo não apenas está em outro ambiente como muitas vezes temos que seguir imediatamente as instruções dadas. Antigamente, quando não havia o amplo com o uso do TCAS, radar de bordo que mostra a posição e o deslocamento das outras aeronaves nas proximidades, os pilotos ficavam completamente nas mãos do controle de tráfego aéreo, era uma confiança quase cega. Assim como os passageiros ficam 100% à mercê dos pilotos, nossas vidas dependiam do controle de tráfego aéreo. Com o TCAS é diferente, temos uma ferramenta a mais para aumentar a segurança de voo.

Na “velha Varig” havia outra relação de confiança que nos dava bastante tranquilidade para exercer nossos trabalhos: era a confiança que tínhamos na empresa e em nossas chefias, que na maioria das vezes era mútua. Acreditávamos que um erro de nossa parte, com ou sem maiores consequências, seria tratado de forma justa, não havia um medo ou receio de punição, tão pouco de demissão. A diretoria de operações, por sua vez, também confiava bastante no julgamento dos pilotos. Antes da era da internet e telefonia celular, quando surgia um problema em locais remotos e havia necessidade de um contato telefônico, era comum ouvirmos deles que o que nós, comandantes, decidíssemos, estaria bem decidido.

Os comandantes, sendo mais experientes, costumam favorecer os copilotos oferecendo a eles mais oportunidades de pousar o avião. Se o número de etapas é impar, geralmente o copiloto irá operar mais vezes o avião, e eles adoram! Quando é a primeira vez que conhecemos determinado copiloto e deixamos que ele decole e pouse o avião, estamos confiando não apenas nele, mas em todo o departamento de ensino, treinamento e avaliação da empresa. A decolagem é um processo mais simples, mesmo assim a atenção do comandante é grande. Se não ocorreu antes, durante a etapa de cruzeiro o comandante certamente vai sondar o copiloto a respeito de sua experiência profissional. Assim, sabemos o que esperar do copiloto quando ele estiver manejando os comandos na hora da aproximação e pouso.

Por fim há a autoconfiança, talvez a parte mais interessante da nossa atividade. Devemos confiar em nossas habilidades e conhecimentos, saber quão prontos estamos para as situações que possam surgir e também estar cientes de nossas limitações. Saber o momento de avançar, de parar e o momento de recuar. É importante ter em mente que com toda a confiança que depositamos em pessoas e equipamentos, temos que ter sempre um plano “B”, uma pequena desconfiança.  O que fazer se o carregamento não estiver correto, se os instrumentos de voo fornecerem informações errôneas, se a instrução do controlador de tráfego aéreo nos parecer conflitante com a segurança do voo e se panes surgirem pela frente?  Um constante exercício de se antecipar aos problemas, ou como se diz na aviação, estar um passo à frente do avião.

Antes que digam que eu me esqueci da enorme confiança que é depositada na área de manutenção e engenharia aeronáutica, deixo esta parte para a próxima postagem.



sexta-feira, 4 de maio de 2012

Ice pellets

Foi mais uma daquelas noites de muita chuva e ventos fortes na região sudeste do país. O choque de uma frente fria com uma massa de ar quente causou bastante dificuldade para os aviões que chegavam em São Paulo naquele final de abril.

Meu voo, de Brasília para Viracopos/Campinas, decolou às sete e quinze da noite conforme o previsto e ao atingir o nível de cruzeiro visualizamos diversas nuvens pesadas à frente.  Um desvio para lá, outro para cá e deixamos Uberaba para trás. Entrando no estado de São Paulo, ainda desviando das nuvens pesadas, iniciamos a descida cientes das condições meteorológicas de Congonhas, Guarulhos e Viracopos. Guarulhos, que estivera fechado para pousos e decolagens por aproximadamente 25 minutos, estava aberto e o controle de tráfego aéreo retomava o sequenciamento das aeronaves que até então estavam em espera. Neste momento Congonhas teve suas operações suspensas por estar debaixo de chuva forte e os aviões que para lá se destinavam iniciavam espera. Viracopos estava aberto, porém com chuva leve sobre a pista.

Nestas horas o controlador de tráfego aéreo tem que ser bom! Os pilotos que estão em voos de espera ficam pressionando por estimativas de melhora e abertura dos aeroportos; até parece que não sabem que o controlador, que está dentro de uma sala fechada, não tem como prever quanto tempo vai levar para a chuva passar. Quem determina se o campo está aberto para pousos é a torre de controle, que no caso de Congonhas, ainda depende da administradora do aeroporto para fazer uma vistoria na pista antes de liberá-la. Os pilotos, de olho na quantidade de combustível a bordo, analisam suas alternativas primárias e secundárias já que nem sempre podem seguir para determinado aeroporto devido à lotação de pátios para estacionamento e outras dificuldades inerentes à infraestrutura aeroportuária brasileira.

Próximos a Viracopos, vendo nitidamente pela tela do radar meteorológico que a cidade de campinas estava debaixo de um CB (nuvens de chuva forte), fomos orientados a voar em círculos, pois nosso destino estava fechado para pousos. Com bastante combustível de reserva e para não congestionar a frequência rádio desnecdesnecessariamente, iniciamos nossa espera informando aos passageiros a nossa situação. O vento era forte e aparentemente estava empurrando para longe do aeroporto as nuvens pesadas. Nosso aeroporto de alternativa era Confins/Belo Horizonte cujo tempo permanecia bom, a frente fria ainda não havia chegado por lá. Além de Confins ainda poderíamos contar com Guarulhos e Galeão, o que nos deixava bastante tranquilos.

Não foi necessário nem quinze minutos de espera e Viracopos abriu, a chuva ainda estava sobre o campo, mas agora com fraca intensidade. Orientados pelo controle de tráfego aéreo, entramos na sequência para pouso recebendo uma informação que para mim foi inédita: havia bastante quantidade de granizo sobre a pista de pouso!   À nossa frente seguiam duas outras aeronaves, o que era bom, pois assim os pilotos ao pousarem poderiam passar alguma informação relevante caso encontrassem alguma dificuldade no pouso, além do mais, dois aviões pousando antes de nós, certamente dissipariam parte do granizo.

Na aproximação final, com chuva nos para-brisas, não demorou para avistarmos a pista, o vento já não era forte e estava praticamente alinhado com a nossa trajetória. Na área de toque dos pneus com a pista quase não havia mais granizo, porém, à medida que a velocidade diminuía, não apenas víamos uma grande quantidade deles sobre a pista, mas também sentíamos o avião rolando sobre pedras de gelo.

Em 30 anos de aviação, esta foi uma situação inédita para mim. Já pousei debaixo de chuva forte, debaixo de neve, ventos laterais, de cauda, com raios e rajadas, mas em uma pista parcialmente coberta de granizos (ice-pellets, ou ainda, hail, em inglês), foi a primeira vez!