terça-feira, 12 de novembro de 2013

Em hibernação

Meu Blog está hibernando.  Nestes quatro anos e meio foram  mais de 180 postagens que escrevi com muito entusiasmo. No primeiro mês foram 9 postagens e mantive uma boa média nos primeiros anos.
Acontece que de uns tempos para cá ficou difícil escrever as estórias. Todos os dias eu penso em uma nova postagem, começo a escrever, mas não fico satisfeito com o texto, ou simplesmente o texto não flui.  Não quero postar qualquer coisa só para manter o Blog ativo.

Observei que para um Blog ter longevidade, algumas coisas são necessárias:
1- O administrador do Blog tenha uma equipe.
2- O Blog se torne uma fonte de renda, e neste caso há necessidade de atualizações diárias, com “banners”,       links e outros Gadgets para tornar o Blog comercialmente viável.
3- O blog passe a “replicar” textos e notícias de outras fontes. 
4- O Blog perca a característica inicial e se adapte.

Acontece que eu não quero nenhuma destas coisas. Também não desejo tornar o Blog num diário de viagem, ou ficar falando mal da administradora do aeroporto, da autoridade deste ou daquele país, ou da empresa A, G ou T. Também não quero escrever sobre “tecnicalidades”, procedimentos e principalmente assuntos “internos” da empresa. Há também estórias que eu poderia contar, mas que eu não devo postar na internet. Por exemplo: quando escrevi sobre “Os pegadores”, pensei em fazer um texto sobre “As pegadoras”, mas desisti, pois as comissárias poderiam não gostar. Há outros assuntos que também prefiro não mexer.

O Blog tem que ser uma fonte de prazer, e não de preocupação. Então vou deixa-lo hibernando, e quando sentir que tem uma coisa legal para escrever e as ideias fluírem, eu escreverei.

Agradeço a todos que acompanham e principalmente aos que comentam. Agradeço também aos comentários em apoio pelo falecimento da minha sogra.

Quem sabe sem a obrigação (sim, ultimamente eu vinha me sentindo na obrigação de escrever para o Blog) e com o tempo, eu consiga escrever algo que eu curta e que seja de preferência uma estória minha.

É isso, obrigado. 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Botão liga/desliga

Nove horas da noite e eu estou em Manaus, assistindo TV. Deveria estar dormindo, mas como dei uma cochilada a tarde, não consigo. A decolagem será às três da madrugada num voo para o Rio de Janeiro onde, após uma escala de uma hora, farei uma segunda etapa para Recife pousando lá às onze da manhã. Aqui, sentado na cama, fico pensando na hora em que vou cair exausto em outra cama, no hotel em Recife!

 Programar e efetivamente conseguir descansar adequadamente antes de cada voo é um verdadeiro desafio na vida de um tripulante. Os ciclos de descanso e vigília a que estamos sujeitos são muito inconstantes.

Vejamos uma situação típica:

O primeiro dia de uma programação começa com a decolagem no final da tarde e encerra às duas e meia da manhã. Você segue para o hotel e quem sabe consegue dormir às quatro da manhã. Os mais jovens conseguem esticar o sono até meio dia ou além. Os mais velhos (meu caso) dificilmente conseguem ir além das dez da manhã. No segundo dia a condução está marcada para as duas da madrugada então você deve dormir bem cedo. Mas quem disse que o corpo consegue? Afinal de contas, no dia anterior este era o período de vigilância! Serão 4 ou 5 dias trocando a noite pelo dia, e ao chegar em casa você está cansado, seu ciclo circadiano confuso. É necessário mais de uma folga para as coisas voltarem ao normal.

A programação seguinte também é uma daquelas que você gostaria de ter em seu corpo um botão liga/desliga. Com decolagens entre 5 e 6 da manhã, o despertar será cedo, bem cedo. Um dia de folga e há uma nova programação, agora com voos decolando à noite. O corpo não entende; agora nada de dormir cedo, pelo contrário, a vigília terá que ser até o nascer do sol!

Não é fácil. Cada um tem sua estratégia e a que mais funciona é aquela que diz para não deixar para depois a dormida que pode ser realizada agora! E se há a estratégia para dormir, há também para se manter desperto durante os voos: comer é algo que se pode fazer na hora que o silêncio e escuridão da cabine de comando estão fazendo seus os olhos fechar. O problema é que este método engorda. Uma solução é levar um punhado de mexerica ou outra fruta bem perfumada. Café e chá são os clássicos da madrugada e há vários métodos para se preparar um bom cafezinho. Numa destas viagens, quando o sono de um estava contagiando o outro, o copiloto me ofereceu um café passado na hora; fez um furo embaixo de um copo de plástico e com um coador de papel improvisou um filtro. Ficou ótimo o café e nos manteve desperto, pois todo este processo levou tempo.

Ler é uma boa atividade, mas cuidado: dependendo do conteúdo a leitura poderá aumentar ainda mais o sono e por outro lado, se a leitura estiver muito boa, o nível de atenção ao voo vai cair um pouco. Vale tudo; ficar em pé, ir ao banheiro, acender a luz da cabine, conversar e até, dependendo das condições do voo (tempo bom, sem turbulência) e do seu companheiro na cabine de comando, dar um cochilo.

O que me consola ao me ver acordado na cama, quando deveria estar dormindo, é que tem dado certo. Nestes anos todos, com ou sem o descanso apropriado, sem ter o tal do botão liga/desliga, eu chego ao final da programação achando que até que não foi tão terrível assim. Acho que é o instinto de sobrevivência.


sábado, 3 de agosto de 2013

Planejar, planejar e planejar.


Um voo seguro, uma boa aproximação e um pouso preciso são consequências de um bom planejamento. Planejar é fundamental, mas como tudo na vida, há que se acertar na medida, pois tudo que acontece em excesso pode ser ruim. 

Certa vez, voando o MD-11, fiz um voo para Europa onde a obsessão do comandante pelo planejamento tornou a rotina de trabalho desnecessariamente cansativa. Naquela noite a tripulação na cabine de comando era de 3 comandantes e um copiloto de forma que durante o longo voo de cruzeiro, enquanto uma dupla trabalhava a outra descansava. O meu turno de trabalho foi na segunda metade da viagem, a partir do sobrevoo da região da Ilha do Sal (Cabo Verde) até o pouso em Londres, quando ao meu lado ficou o Comandante do voo dividindo as tarefas na cabine. Quando há mais de um comandante na tripulação, geralmente o mais “antigo” na empresa exerce a responsabilidade pelo voo.  

Nestas últimas cinco horas e meia de voo é feito o planejamento para a chegada; verificação periódica dos boletins meteorológicos do destino e alternativas, análise dos possíveis procedimentos de descida e pouso, monitoramento do consumo de combustível, rotas de taxi após o pouso e etc. Como o voo é longo, além de planejar dá para fazer muitas outras coisas: bater papo, comer, ler revistas e jornais, descansar, esticar as pernas, estudar e olhar a paisagem. 

Mas a preocupação daquele comandante quanto ao planejamento era maior que tudo e por respeito ao colega, tive que acompanhá-lo. Mesmo com tempo bom em Londres, a cada meia hora ele queria uma atualização das condições meteorológicas. Mesmo com o avião consumindo menos que o previsto ele queria um cálculo para uma segunda rota alternada. Ele não parava de planejar e se prevenir de todas as maneiras. Consultava todos os manuais que traziam as particularidade das rotas a serem voadas, dos (im)prováveis aeroportos de alternativas e em seguida voltava para a atualização meteorológica.  Nem parecia que ele já havia feito aquele voo algumas vezes. Pela primeira vez em um voo para a Europa eu passei 100% do tempo planejando e “brifando” a chegada sem dar tempo para qualquer outra coisa. Pois não é que a única coisa que ele não previu aconteceu?

Próximos a Paris, o comissário chefe de equipe nos informou que havia um passageiro passando mal. Um médico foi solicitado a prestar ajuda e após uma análise veio a séria recomendação para que um atendimento adequado fosse realizado o quanto antes, pois o passageiro em questão era um senhor que apresentava um quadro de AVC. Todo o planejamento para a chegada em Londres foi momentaneamente para a “cucuia” e numa descida às pressas, pousamos em Paris onde o passageiro, acompanhado de seu filho desembarcou em uma ambulância.

Para concluir o voo na etapa Paris/Londres, o comandante perguntou quem gostaria de “fazer a etapa”, ou seja, ocupara os assentos de decolagem e pouso. Apressei-me em dizer que o ideal era que ele e eu continuássemos na pilotagem, afinal de contas, estávamos planejando aquela chegada em Londres havia horas. Que voo cansativo!

Após dois dias em Londres assumimos o voo de volta. Fiz questão de optar por trabalhar junto com o copiloto e assumimos a primeira metade do voo, da decolagem até o sobrevoo da Ilha do Sal. Foi ótimo. Trabalhei, comi bem, li os jornais e revistas e descansei um pouco. Na passagem de turno dei uma piscadela para o outro comandante, que por ser mais “jovem” na empresa, assumiria o papel de copiloto para o Comandante Planejador. A piscadela queria dizer: - Será que pelo menos na volta ao Brasil a carga de trabalho vai ser menor e você vai conseguir ler o jornal?

Depois do pouso em Guarulhos ele me contou que mesmo estando acostumados à chegada, mesmo estando o tempo bom, sem qualquer indício de nevoeiro, ele também não conseguiu relaxar em função de um constante planejamento.

Vai voar, trabalhar ou viajar? Planeje sim, mas acerte na medida ok?

domingo, 16 de junho de 2013

O cachorro e o bifinho

Na “velha” Varig o copiloto ao iniciar a carreira voava nas linhas nacionais e usava nos ombros uma divisa com duas faixas. Ao ser promovido para os voos internacionais passava à categoria de copiloto 3, recebia um adicional no salário e passava a usar divisa com 3 faixas.  Quando chegava o momento de iniciar o treinamento para ser promovido à função de comandante, o copiloto 3 voltava para os voos nacionais e  iniciava a instrução voando com um comandante instrutor. Pilotar um avião sentando no assento esquerdo ou direito é, mecanicamente falando, praticamente a mesma coisa, é como dirigir um carro na Inglaterra; nos primeiros minutos é estranho, mas a mente e o corpo logo se adaptam.

Ocupar o assento da esquerda dá ao piloto, além o controle do avião nas movimentações no solo, algumas atribuições normalmente sob responsabilidade do comandante, tais como dar a partida nos motores, o contato rádio com a manutenção e o pedido de alguns checklists.

Pois bem, esses dias eu encontrei com um colega contemporâneo de Varig e durante nosso longo bate papo relembramos as coisas que fizemos em nossa época de copiloto e que não deveríamos ter feito. Ele me contou uma estória que aconteceu com ele há quase 25 anos atrás quando ele era maduro, “pero no mucho”.

 Após voar por alguns anos como copiloto 3 nos voos internacionais ele voltou para os voos nacionais para voar ocupando o assento da direita aguardando o momento de iniciar o treinamento para a futura promoção a comandante. Como ele usava 3 faixas nos ombros era comum os comandantes acharem que ele já havia iniciado o processo de instrução e ofereciam a ele o assento da esquerda. Nestas ocasiões ele sempre dizia que ainda não era a hora, que deveria sentar no assento da direita exercendo plenamente as funções do copiloto. Mas um dia um comandante insistiu para ele efetuar o voo sentado na esquerda para que já se acostumasse à nova fase que em breve chegaria. Foi como ofertar um bifinho a um cachorro faminto!

Havia 3 comandantes que sempre deixavam ele fazer os voos na esquerda, já em ritmo de instrução. Esses 3 comandantes haviam iniciado suas carreiras na Cruzeiro do Sul, empresa que fora adquirida pela Varig,  e cujo grupo de pilotos tinham uma postura mais liberal e despreocupada. Como ele tinha 3 faixas nos ombros ninguém percebia a irregularidade, pois achavam que se tratava de um copiloto em instrução. Até que um dia algo aconteceu.

Após o pouso em Brasília, logo ao iniciar o desembarque dos passageiros, eles observaram que justamente o comandante chefe da instrução, que estava em outro avião a cerca de 200 metros de distância, ia caminhando em direção a eles. Trocaram rapidamente de assento, mas já era tarde demais. O chefe da instrução, já sabendo a resposta, perguntou a este meu colega se ele já havia iniciado a instrução para comandante e diante da resposta foi conversar com o comandante do voo. Passou uma bela descompostura nele e disse que só não iria levar o caso adiante em respeito à amizade que havia entre eles, mas que era bom ele saber que aquela ocorrência poderia bem resultar em uma demissão. Com cara de quem fez coisa errada, eles concluíram o voo até São Paulo.

Assim que ele chegou em casa  já havia uma mensagem da empresa para que no dia seguinte comparecesse no hotel onde o comandante chefe da instrução estava hospedado.  Contou o caso para sua esposa e ainda naquela noite recebeu o primeiro sermão. No dia seguinte fez a barba e foi preparado para receber o segundo sermão. Ouviu calado, aceitou a bronca, reconheceu o erro e pediu desculpas. O chefe da instrução concluiu o “sabão” dizendo que tinha certeza que o nosso amigo seria um dia promovido a comandante, mas que estivesse preparado e estudasse bastante, pois não iria ser fácil.

Durante muito tempo ele guardou certo rancor, e até receio do comandante chefe da instrução. Mas o tempo passou e ele percebeu que na verdade o comandante foi muito legal por não ter levado o caso adiante e se contentado ao chamar a atenção dele e do comandante que havia permitido a troca de assentos. Como chefe da instrução ele jamais poderia deixar de ter uma atitude após ter percebido o que eles haviam feito.

Parecia que ele tinha aprendido a lição, até que passado um tempo ele foi voar com uma daqueles três comandantes “legais”. O comandante ofereceu o assento da esquerda. Ele agradeceu, mas recusou a oferta. O comandante insistiu. Ele olhou para um lado, para o outro... E o cachorro abocanhou o bifinho!



sexta-feira, 17 de maio de 2013

Salve Jorge!

Em 2004 a novela do momento era Celebridade, que em sua última semana, atiçava a curiosidade de boa parte dos brasileiros com o mistério de quem havia matado o tal do Lineu Vasconcelos, personagem interpretada pelo ator Hugo Carvana.  Na noite do último capítulo eu estava decolando de Frankfurt com destino a São Paulo e junto com boa parte da tripulação, curioso para saber o desfecho do folhetim.

Nestas travessias do Atlântico, há uma área entre Fortaleza e a Ilha do Sal onde os voos que se destinam à Europa se “encontram” com os que estão voltando ao Brasil. Usando uma frequência livre, uma frequência “ar-ar”, os pilotos trocam informações que podem ser importantes ou apenas para um breve bate papo. Aproveitei aquele momento para perguntar aos pilotos na frequência se alguém sabia quem tinha matado Lineu Vasconcelos.  A resposta veio rápida: - Foi a Cachorra! Sem demora eu informei aos comissários que a assassina era a Cachorra, apelido da personagem interpretada pela atriz Cláudia Abreu. Após o pouso dei as boas vindas aos passageiros e também a eles, revelei o mistério.

No ano passado, no final da novela Avenida Brasil, até o Operador Nacional do Sistema Elétrico teve que manter equipes de prontidão devido a um temor de apagões de energia no horário do último capítulo. A novela estava fazendo um enorme sucesso e seriam milhões de telespectadores ligados na telinha.

Nas últimas semanas da Avenida Brasil, quando a atriz Adriana Esteves alucinava o horário nobre e eu estava voando à noite, não deixava de  comentar sobre a novela em meus anúncios aos passageiros. Dizia que gostava de voar naquele horário quando a atmosfera costuma sem mais calma e o voo menos sujeito a turbulência, mas que, honestamente, eu preferia estar em casa acompanhando as travessuras da Carminha. Após o pouso, me despedia dos passageiros com um “oi, oi, oi”, reproduzindo o refrão da música tema da novela. Era um barato, os passageiros desembarcavam rindo e cantarolando o refrão.

Nesta semana mais uma novela chega ao fim; Salve Jorge, que começou insossa e agora está atingindo altos índices de audiência. Desde segunda feira que, voando no final da tarde ou à noite, eu insiro o tema nos meus anúncios.  Ontem, dia do penúltimo capítulo, decolei de Navegantes/SC com destino a Congonhas num voo curto e turbulento em função de mais uma frente fria atuando sobre os estados do Paraná e São Paulo. Pousamos um pouco antes das oito da noite e a caminho do local de estacionamento do avião, fiz meus comentários “novelísticos”.

Foi mais ou menos assim:  "Muito bem, mais uma vez bem vindos a São Paulo, um voo um pouco turbulento, é verdade, mas foi rápido e seguro. Olha, eu quero dizer para vocês que eu sou um cara que gosta de futebol, luta livre e motocross, mas tendo em casa duas filhas, além da minha mulher, acabei fisgado pela novela que está nos últimos capítulos. Agora não tem jeito, quero saber qual será o desfecho da Lívia Marini, do Russo e de toda a turma do mal. Então, para quem gosta do tema, me despeço com uma saudação especial: Salve Jorge!" A turma aplaudiu.


Já estacionado, a comissária me chamou pelo interfone dizendo quem alguns passageiros queriam saber se “esse cara era eu”. Emendei mais um breve anúncio dizendo que apesar de ROBERTO CARvalho ser parecido com o nome do “Rei”,  eu não era o cara, e que embora eu estivesse ligado na trama da Glória Peres, eu tinha era saudade da Carminha. Foram vários os comentários positivos no desembarque, os passageiros realmente curtiram aquele momento de descontração, me cumprimentando e se despedindo com um - SALVE JORGE!

sábado, 13 de abril de 2013

Voo contra o relógio



A maioria dos aeroportos comerciais funcionam  “H24”, ou seja, ininterruptamente. No entanto, alguns deles, quase sempre devido a restrições ambientais relativas a ruído no entorno, encerram as operações durante a noite. Nos voos da “velha Varig” para o exterior essas restrições dificilmente causavam problemas, pois mesmo que o voo estivesse atrasado ainda havia uma boa margem de segurança. As chegadas ao exterior eram tranquilas, uma vez que geralmente os voos pousavam pela manhã e as decolagens de lá para cá também, já que as saídas eram por volta de nove ou dez da noite e o horário de encerramento das operações nos aeroportos nunca eram antes de onze da noite.

No Brasil, Congonhas/SP e Santos Dumont/RJ possuem restrições quanto ao horário de funcionamento, mas nem sempre foram assim. Na época do saudoso Electra que voava na Ponte Aérea, Congonhas operava sem restrições durante a noite e madrugada. Eram outros tempos e exceto numa eventualidade, não havia movimentação de pousos e decolagens após a meia noite. Mesmo assim o aeroporto estava aberto e durante anos, tomar um cafezinho na madrugada era um bom programa na noite paulistana.

No início dos anos 90, Congonhas passou a ter as operações suspensas das 23hs às 06hs da manhã do dia seguinte, medida bastante acertada em função do nível de ruído provocado no entorno do aeroporto. Só quem mora na rota de pousos e decolagens ou nas proximidades do aeroporto sabe o que é ter que esperar o avião passar para poder ouvir alguma coisa.

Os pilotos dos voos cujo horário de chegada era próximo do horário de encerramento das operações passaram a ter uma preocupação a mais: não permitir que um atraso comprometesse o estimado de chegada, obrigando a um desvio para Guarulhos. No período em que eu voei o 737 na Ponte Aérea, principalmente naqueles dias de chuva e fechamento momentâneo do aeroporto, era uma correria tremenda para pousarmos em São Paulo antes das onze da noite. E chegava a ser divertido também. Houve ocasiões em que pousei no Santos Dumont pouco antes das dez da noite e, com toda a equipe de terra (despachantes, descarregamento e carregamento de bagagens, mecânicos, abastecedores, limpeza e abastecimento de material de comissaria) e de voo, preparada e motivada, conseguíamos aprontar e embarcar rapidamente os passageiros de forma a decolarmos em tempo para pousar em São Paulo antes que Congonhas encerrasse as operações. Para isso era necessário que em voo “atalhássemos” a rota ao máximo possível; cada “proa direta” que o controle de tráfego aéreo autorizasse era bem vinda, cada pequeno aumento na velocidade era uma ajuda.  Decolávamos do Rio de Janeiro estimando o pouso às 23:05hs e pousávamos às 22:56hs!

Até o começo dos anos 2.000, o horário de encerramento de Congonhas podia ser “flexibilizado” com o aval da autoridade aeronáutica. Quando necessário, o representante da empresa aérea entrava em contato com a autoridade (um Coronel da Força Aérea responsável pelo controle de tráfego de Congonhas) e a autorização era dada ao piloto. Em certas ocasiões, voando do Rio para São Paulo, tínhamos que reduzir a velocidade enquanto aguardávamos a autorização para pousarmos além das 23hs.

Cada vez que um avião pousava após as onze da noite os moradores dos bairros em volta de Congonhas protestavam e logo conseguiram uma liminar  judicial que proibia qualquer extensão no horário de funcionamento de Congonhas. Não tinha mais “choro”, horário era horário! E quem passou a ditar a hora certa foi a Torre de Controle de Congonhas! Houve muita discussão e bate boca na fonia entre pilotos e controladores, já que por diferença de um ou dois minutos, decolagens e pousos foram negados pela Torre de Controle. Nos meses do chamado “apagão aéreo”, após o acidente com o Airbus da Tam, houve uma nova autorização para flexibilizar as operações em Congonhas; me recordo de um voo em que decolei para lá de meia noite!

Hoje Congonhas opera com bastante rigidez. Empresas, controladores e pilotos se adaptaram, tanto é que não há voos programados para decolar depois das 22:30hs.  Neste horário, quando há um voo atrasado, as empresas estão correndo, pois sabem que não há flexibilização. Há não muito tempo atrás houve um atraso no nosso voo e o resultado foi deslocar todos os passageiros para Guarulhos. Pousar antes das 6hs da manhã também é impensável! Pela manhã, por volta de 05:50hs, já há aviões voando em espera enquanto aguardam a abertura do aeroporto.  Recentemente estávamos em espera para pouso e ouvimos na fonia a aproximação daquele que seria o primeiro pouso do dia. Olhando para o relógio, observando a posição daquele avião e calculando o momento exato do pouso, parecia que o pouso se daria um pouquinho antes das seis. Bem, mas o que vale é o relógio da Torre, que deveria ser rigorosamente sincronizado com os dos aviões através de GPS.  Observamos. Não deu outra, e em seguida ouvimos na frequência rádio que o avião em questão fora orientado a descontinuar a decolagem e entrar novamente na sequencia de aproximação.  Arremeteu por causa de menos de sessenta segundos!

Uma semana depois eu estava como número um para o pouso em Congonhas. O controle deixou a nosso critério planejar o momento de interceptar a aproximação final, mas pedia para agilizar ao máximo possível. Fomos planejando o percurso da aproximação e controlando a velocidade para pousarmos o mais próximo das seis, mas de forma alguma antes das seis. Não foi um bom planejamento, pousamos às 06:02hs, mas foi melhor assim.


Vejam no YouTube a discussão entre pilotos e controladores: https://www.youtube.com/watch?v=66QLGCAHBkQ


quarta-feira, 13 de março de 2013

O Voo


Assisti “O Voo”, filme cujo protagonista é Denzel Washington, que faz o papel de um piloto dependente de drogas e álcool. Gostei do filme, ainda que alguns procedimentos, e principalmente a manobra que o Cpt. Whip executa sejam absurdas.  Problema de alcoolismo e drogas existe em todas as áreas e a aviação não é exceção.

O regulamento diz que o piloto não pode beber nas oito horas que antecedem o trabalho. As empresas recomendam doze  e até dezoito horas de abstinência alcóolica antes do voo. O regulamento também diz que ninguém poderá exercer qualquer função a bordo sob efeito de drogas ou álcool. No entanto, ao contrário da atual Lei Seca para motoristas, ainda não há no Brasil uma quantidade álcool no sangue que possa ser considerada um limite máximo. Teoricamente, um piloto que bebeu 3 caipirinhas entre meio dia e duas da tarde, pode assumir um voo as dez da noite para voar a madrugada toda. Estará ele em boas condições? Se ele deu uma dormida à tarde, acho que sim, caso contrário, provavelmente terá dificuldade para encarar a jornada.

Uma lata de cerveja no jantar às sete da noite, parece não ser um problema para um voo as duas da manhã (sete horas depois) se o piloto conseguir dormir um pouco antes de assumir o voo. O problema é que as pessoas são diferentes, tanto na maneira de pensar como na maneira que o organismo reage ao álcool. Há os que não bebem uma gota de álcool no dia em que vão voar, mesmo que este voo seja à noite, e há os que não se importam e beber no almoço e voar no final da tarde.

Com relação às drogas, o problema é similar. Aposto minhas divisas que deve haver pilotos que, em algum momento antes do voo, consomem drogas ilícitas. E se deve acontecer com pilotos, certamente também ocorre entre os comissários(as). Não é incomum sentir cheiros suspeitos nos corredores dos hotéis de pernoite. Há ainda outras drogas que podem alterar a capacidade de raciocínio, tais como estimulantes.

Em 1984 eu tinha um professor de inglês que era piloto e fora afastado do voo devido ao alcoolismo. Nestes anos de aviação comercial, sabíamos de colegas que tinham sérios problemas com a bebida. Quase sempre estas pessoas são muito queridas e capazes, exímios pilotos, com uma pilotagem acima da média. Certa vez houve um colega que, ao se apresentar para o voo em Belém, teria dado sinais de que estava de ressaca, ou talvez até embriagado. A tripulação de comissários se recusou a efetuar o voo e um grande problema surgiu. Como o comandante já tinha tido problemas de outra natureza com a chefia de pilotos, ele acabou sendo demitido. Foi em 1990, nada ficou provado.

Em uma empresa estrangeira, dois pilotos tomavam alegremente sua cerveja num pub. Flertando com duas mulheres, conversa  vem, conversa vai e eles comentaram que eram pilotos e que voariam na manhã seguinte. Foram denunciados e horas depois, na apresentação para o voo, foram submetidos ao teste do bafômetro. Foram demitidos.

Em 2008,  ao passar pelo detector de metais e colocar sua mala de mão no raio X de um aeroporto na Europa, um comandante foi interpelado pelo agente de segurança, pois tinha um canivete na mala. Ao ser questionado, este piloto teria sido ríspido com o agente de segurança, que sentindo um cheiro de álcool no hálito do comandante, desconfiou da sua sobriedade. Ele ficou retido, foi o maior problema. Ele foi afastado do voo para tratamento e meses depois voltou ao trabalho. Não durou muito, o problema era sério e ele foi demitido.

Hoje em dia, um piloto como o representado pelo Denzel Washington não duraria muito numa empresa de aviação comercial. No nosso dia a dia, temos que interagir com muitas pessoas e um piloto sob efeito de drogas ou álcool, teria que ser muito hábil para não deixar transparecer sua condição. No passado, alguém percebendo ou suspeitando que um piloto estivesse sob efeito de álcool, teria receio de denunciar ou se recusar a fazer parte daquela tripulação. Hoje é diferente, e a maioria dos tripulantes não hesitaria em denunciar e se negar a voar com um piloto que aparentemente não estivesse bem.

As empresas de aviação no Brasil estão cientes do problema e estão criando programas para detectar e evitar que tripulantes possam trabalhar sob o efeito de drogas e álcool. Elas temem o que possam encontrar ao submeter seus tripulantes a exames específicos e aleatórios. Além do custo que pode ocorrer, já que a princípio, um tripulante que for considerado um alcóolatra não pode ser demitido, deve ser submetido a um tratamento. Algumas empresas submetem seus funcionários ao “teste do cabelo” onde uma amostra do cabelo (ou unha, ou qualquer outro pelo do corpo) é enviada para análises específicas que detectam a presença de uma série de substâncias que podem estar presentes até semanas após o uso.

No final da “velha Varig”, no surgimento da “nova Varig” (antes desta ser adquirida pela GOL), nós pilotos, fizemos este exame. Alguns poucos colegas não quiseram se submeter a este teste e ficaram de fora da nova empresa, outros, cerca de 3% do total que foram examinados, foram reprovados.

Eu passei, sou “ficha limpa”, e agora se me dão licença, fico por aqui e vou pegar uma cervejinha na geladeira.



sábado, 16 de fevereiro de 2013

Cargueiros e helicópteros



 O tempo ideal entre um pouso e uma decolagem, o “trânsito” dentro de uma programação, é de cerca de 45 minutos. Neste tempo é possível efetuar os preparativos para a etapa seguinte com calma, dá para fazer um lanchinho na cabine, ir ao banheiro e até fechar os olhos por alguns minutos. Menos de 45 minutos fica um pouco corrido e mais que isso, “quebra” o ritmo de trabalho, a menos que se faça algo produtivo. Neste ano que recém começou já tive dois trânsitos longos que foram para lá de produtivos, um em Viracopos, Campinas e o outro em Navegantes, SC.

 No primeiro caso, decolamos de Curitiba para Campinas e lá chegando ficaríamos parados por quase duas horas. O que fazer neste tempo? Um lanche no saguão do aeroporto, bater papo com os colegas, ler um livro ou talvez um belo e grande NADA. Porém, quando lá pousamos, ao invés de pararmos próximo ao terminal de passageiros, fomos orientados a seguir para o pátio de cargas e com isso, a opção de dar um “rolê” no saguão foi excluída. Viracopos é um terminal de cargas ultra movimentado e para minha sorte, no mesmo pátio em que estávamos, havia um Jumbo 747-400 cargueiro da empresa Atlas e pousando naquele instante vinha um MD-11 da FedEx. - Essa é a nossa chance de um passeio dignos dos “tarados pela aviação”! – Pensei eu.

 Deixando o avião sob a responsabilidade do pessoal da manutenção, chamei o copiloto para dar uma volta pelo pátio. Nosso primeiro destino foi o Jumbo da Atlas Cargo que estava em processo de desembarque/embarque de carga. A Atlas Cargo possui um total de 44 aviões cargueiros, sendo 36 Jumbos. Devidamente identificados, fomos autorizados a subir no cockpit do Jumbo, onde havia apenas um senhor responsável pela limpeza e abastecimento do material de comissária.  Foi incrível, havia uns bons anos que eu não entrava na cabine de um Jumbo! Como é alta a cabine, como é lindo o 747. O Jumbo é o sonho do piloto de cargueiros, pois o “upper deck” é todo destinado aos pilotos, com amplo espaço para poltronas, galleys, e as camas para o repouso. Caminhamos pelo estreito espaço entre os “pallets” de carga e a lateral do avião e pudemos ver o “nariz” do 747 se abrindo.


 Saindo do 747, continuamos nossa caminhada passando em frente ao MD-11 da Centurion Cargo; aquele que interditou a pista de Viracopos por quase 48 horas no ano passado. Ele continua lá, cheio de material em volta para o conserto. Também passamos em frente a um velho guerreiro: um Boeing 727 cargueiro da FedEx. A FedEx possui 644 aviões, muitos deles de pequeno porte para atender às pequenas cidades americanas. O próximo objetivo seria tentar entrar em um dos 64 MD-11s da frota da FedEx. Sabia que não era um bom momento para visitas, pois os três pilotos estavam chegando naquele instante e com certeza tinham muito a fazer. Mesmo assim o comandante foi muito gentil e não apenas nos convidou para subir a bordo, mas também fez questão que sentássemos nos assentos deles enquanto ele cuidava de outras tarefas. Eu parecia criança e sorri contente ao me sentar no assento da esquerda. Por um breve instante voltei alguns anos no tempo e recordei os bons anos em que eu era comandante de MD-11, tendo inclusive feito voos cargueiros como aquele. Fotografamos, agradecemos e retornamos ao “nosso Boeinguinho”.  Decolamos para o Galeão e na sequência, de volta para Guarulhos.



Na semana seguinte foi a vez de uma escala prolongada em Navegantes/SC. Naquela manhã eu tinha acordado às 03:30 hs, então aquele tempo parado seria perfeito para um bom cochilo, porém...Olhei para o lado e observei os hangares da Lider, onde, naquele horário das oito da manhã, os helicópteros estavam sendo preparados para mais um dia de voos até as plataformas, distantes até 200 quilômetros da costa. Chamei o copiloto e lá fomos para um “tour”. Primeiro fomos recepcionados por um dos mecânicos da Lider que nos mostrou os helicópteros e respondeu às nossas perguntas. Depois foi a vez de um dos comandantes nos contar detalhes das operações nas plataformas da Petrobrás. Incrível, os helicópteros que de longe parecem pequenos, na verdade são muito grandes e sofisticados. O comandante nos deu detalhes de como funciona o pouso nas plataformas em dias de ventos fortes e das dificuldades adicionais por conta da oscilação das plataformas em dias de mar mexido.

 Faltando quarenta minutos para a nossa decolagem, mais uma vez agradeci s e, junto com o copiloto, seguimos nosso caminho para regressar a Congonhas.

 Foi muito legal, em menos de dez dias, dois trânsitos longos que eu soube aproveitar bem.









segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Cheques e recheques

Frequentemente os pilotos são submetidos a um voo de avaliação, é o voo de cheque. O primeiro destes voos de cheque ocorre no início da carreira para obter o brevet, e depois, periodicamente, seja uma simples reavaliação, seja devido a um novo equipamento ou a uma outra categoria de licença (voo por instrumento, voo com aeronaves bimotoras e etc), há novos voos de cheque. O checador é um piloto, geralmente mais experiente ou há mais tempo na empresa ou no equipamento.


Nestes anos todos de aviação, foram muitos os voos em que fui checado, sendo que por mais que eu esteja voando há tempos em determinado equipamento, por via das dúvidas, algumas semanas antes dos meus voos de cheque eu dou uma estudada nos manuais do avião, releio os boletins mais importantes e me atualizo ao máximo para não dar vexame, afinal de contas, um voo de cheque é sempre um momento de avaliação. Tem dado certo.

Nos primeiros voos de cheque numa empresa, é natural que o piloto a ser avaliado esteja um pouco nervoso, e por isso tenha seu desempenho um pouco prejudicado; o comandante checador deve levar isso em conta. Já nos recheques periódicos, que acontece uma vez ao ano, o checador deve exigir um melhor desempenho por parte do piloto sendo avaliado. Embora um voo de cheque deva ser considerado um voo normal, é natural que haja um certo “teatro”, e ambos os pilotos desempenhem de acordo com seus papeis, um conhece o script do outro. O checador pode fazer perguntas sobre assuntos diversos ou simplesmente perguntar ao piloto a ser avaliado se ele tem alguma dúvida, se há algum assunto que ele queira comentar. Para quem está sendo avaliado, quanto menos perguntas, melhor. Uma saída é levantar uma dúvida que provavelmente o checador não saberá responder; um texto do manual que parece dúbio, um esclarecimento a respeito de uma atualização recente em qualquer dos manuais ou ainda a respeito de um fato que tenha ocorrido com o checador.

Quando sai da aviação nacional para voar o MD-11, passei por um período de bastante estudo, pois havia muita novidade, tanto em relação ao avião quanto a todas as questões dos voos de longo curso. O cheque final para voar como comandante pode ser bastante extenso já que num voo para Europa ou Estados Unidos, por exemplo, o que não falta é tempo para perguntas, abertura de manuais e conversas para a avaliação do conhecimento. No dia do meu cheque final no MD-11, embora preparado, estava também um pouco nervoso. Após os preparativos antes do acionamento dos motores, enquanto os passageiros estavam embarcando, surgiu uma dúvida quanto aos procedimentos de contingência relativos a uma carga restrita que havia embarcado no porão do avião. Abri minha malinha de voo e tirei de lá uma pastinha com diversos boletins e “macetários” e prontamente a dúvida foi esclarecida. Minutos depois o comandante checador efetuou um pequeno briefing em relação ao voo de cheque, me dizendo que seria um voo normal, que ele sabia que eu era estudioso e que, segundo as palavras dele, assombração sabe para quem aparece. O voo seguiu tranquilo até Londres, mas o cheque ainda não havia terminado. Na volta, depois de debatermos alguns assuntos, ele preguntou se havia da minha parte alguma dúvida ou algo que eu gostaria de comentar. Disse que sim, que eu gostaria de saber o que realmente tinha acontecido naquele voo em que ele, há quase vinte anos atrás, tinha entrado num CB (nuvens pesadas de chuva cujo interior é carregado de pedras de gelo, com muita chuva e turbulência) e danificado o parabrisa do Boeing 727 com necessidade de uma descida de emergência. Neste exato momento um dos comissários do voo entrou na cabine e o checador me disse que depois ele comentaria o caso. Ele esqueceu e nada mais foi dito. Ao pousar em São Paulo ele me disse que eu estava aprovado me passou as recomendações de praxe.

Em outra ocasião, num belo domingo de sol, sai de casa para ser checado num voo decolando de Guarulhos-SP para Joinville, Navegantes e regresso a Guarulhos. Era uma manhã belíssima, sem uma nuvem no céu, nada que pudesse atrapalhar o voo. Enquanto seguia de carro para o aeroporto ia ouvindo as notícias pelo rádio até que veio as informações dos aeroportos. Dizia o locutor: - Tempo bom no Brasil, todos os aeroportos operam em condições visuais, exceto em Joinville e Navegantes. - Que azar, justamente na minha rota! - pensei eu.

Eu já era comandante há uns anos, e estava acostumado com condições meteorológicas adversas, seria apenas mais um dia. O comandante checador era um cara legal, porém bastante sério, calado e exigente. Naquela época, no começo da década de 90, eu voava o Boeing 737-200 que não era equipado com GPS e os procedimentos tanto em Joinville quanto em Navegantes não permitiam que se descesse até uma altitude muito próxima da elevação da pista, então qualquer camadinha de nuvens poderia impossibilitar o pouso. Outra dificuldade nesta rota, além das serras que estão próximas de Joinville, é o fato das etapas serem curtas, exigindo um planejamento mais rápido e ágil.

No primeiro trecho, mesmo antes de atingirmos o nível de cruzeiro, a descida já estava sendo planejada; qual o procedimento a ser executado e quais seriam as possibilidades no caso de não avistarmos a pista em função das condições meteorológicas. Contatamos a estação rádio de Joinville que nos informou que havia um forte nevoeiro sobre a região, portanto, o aeroporto estava fechado para pousos e decolagens. Não havendo previsão de melhora, seguimos direto para Navegantes, que fica a não mais de 25 minutos de voo de Joinville. Os passageiros que embarcariam em Joinville com destino a São Paulo encarariam um ônibus para pegar o avião em Navegantes, assim como os passageiros que se destinavam a Joinville, após o pouso seguiriam de ônibus ao seu destino final. Ruim para eles, melhor para mim, menos uma etapa naquele voo de cheque.

O procedimento de aproximação por instrumentos em Navegantes previa, após o sobrevoo do aeroporto, voar por três minutos em direção ao mar e com uma curva a esquerda regressar em direção a pista. Neste percurso é previsto a descida até a chamada MDA, a altitude mínima de descida, que deve ser mantida até que se aviste a pista para então prosseguir a descida e pousar. Caso, mantendo a MDA, que naquele procedimento era de 600 pés de altitude (aproximadamente 180 metros acima do mar), não se aviste a pista, é mandatório que em determinado ponto do procedimento uma arremetida sejas efetuada.

A estação rádio de Navegantes nos informou que havia uma camada de nuvens a 600 pés, justamente na nossa altitude mínima de descida. Será que iria dar certo, que seria possível completar o procedimento e pousar? Se a camada estivesse a 700 pés o aeroporto estaria aberto, seria fácil, se estivesse a 500 pés estaria fechado, seria fácil também.

Em descida na aproximação final do procedimento, voando sobre o mar em direção a pista, cuja cabeceira fica muito próxima da praia, atingimos e mantivemos os 600 pés. Voávamos justamente na base da camada das nuvens, e nada de avistarmos a pista. Estávamos seguramente sobre o mar, sem qualquer possibilidade de haver obstáculos abaixo de nós. Se mantivesse os 600 pés, provavelmente não avistaria a pista, teria que arremeter e seguir para Florianópolis, Curitiba ou mesmo regressar a São Paulo. Se por outro lado, enquanto sobrevoando o mar, eu desse uma “furadinha” na MDA, e descesse um pouco, seria possível avistar a pista e seguir para o pouso. Na primeira opção o checador diria que eu não estava errado, mas que sendo comandante eu bem poderia saber que estávamos seguramente sobre o mar e que talvez 50 ou 100 pés abaixo da MDA por um breve período não teria afetado a segurança do voo e levado ao sucesso da operação. Por outro lado, se eu “furo” a MDA e prossigo para o pouso, o checador poderia dizer que apesar de não ter afetado a segurança, houve uma violação intencional das regras básicas de segurança, em total desacordo com a política da empresa e bláh, bláh, bláh.

Com o piloto automático mantendo os 600 pés, olhei para o checador na tentativa de ler seus pensamentos. Não li nada, vi um semblante sério e compenetrado. Olhei para baixo e ao avistar um pequeno barco de pesca , desacoplei parcialmente o piloto automático, desci um pouco, anunciando que estava com referências visuais com o solo, no caso, com o mar. Bastaram 50 pés abaixo da MDA para sairmos da camada de nuvens e avistarmos a pista. Após o pouso, ao estacionarmos a aeronave o checador disse: - Para mim está ótimo, o cheque está encerrado, vamos trocar de assento que eu gostaria de fazer a etapa para São Paulo. – Sim Senhor, é todo seu. - Respondi prontamente.